segunda-feira, 24 de dezembro de 2007

Feliz Natal!

Emocionava-se facilmente, mas ficava especialmente tocada pelo Dia das Mães e pelo Natal. Não via um gesto mais belo do que alguém doar sua vida a outrem — quanto mais a toda a humanidade! Sentia-se privilegiada por ter, entre seus seis filhos, um que nasceu exatamente em uma noite de Natal, quando era esperado para o mês de fevereiro do ano seguinte.
Naquele ano, porém, o Natal fez(-se) mais sentido do que outrora. Afinal, naquele mês, fora a própria Maria, experimentara, pela primeira vez, o sabor amargo da perda de um filho. Gerar uma vida, lutar bravamente por ela e, por fim, perdê-la tristemente... Será que Jesus, ao morrer, sentiu essa mesma sensação? Talvez, mas certamente tinha a certeza de que deixava para o mundo a maior lição de amor que pode existir, o maior gesto de doação, que se traduz em esperança e, de certa forma, se reproduz particularmente na maternidade.
É. A partir daquele ano, ela percebeu que a nostalgia do falecimento é mais forte do que a beleza do nascimento, pois, inevitavelmente, esta é ceifada por aquela. Confirmou também algo, óbvio, que já se anunciava em relação aos laços afetivos: a dor da ausência é proporcional ao amor vivenciado. Mas com essa professora arbitrária — a “indesejada das gentes” —, aprendeu pragmaticamente que existe uma forma de amenizar o sofrimento inexorável da partida: fazer a diferença em cada dia de sua existência, de modo que a vida não seja em vão. Assim, surgirá um novo sentimento — de realização —, que sobrepujará o vazio do não ser mais visto.
Com o duro golpe, humana que é, agiu instintivamente e, em uma postura de autodefesa e amor próprio, varreu para o quarto de despejo da memória a fatídica lembrança, consciente de que esta jamais se apagará e voltará à tona sempre que a marca deixada se fizer notar. Paradoxalmente, as desilusões são cicatrizes que nos machucam, ao mesmo tempo que nos tornam mais fortes e mais humanos.
E, a cada dezembro, com a maturidade que os anos trazem, encara com firmeza aquele aleijão, renasce — qual a fênix que ressurge das cinzas —, e seu “feliz Natal!”, para cada filho, tem força e sentido especiais, ao conter o significado essencial do que a data representa, como se dissesse, com uma paixão além do normal, “obrigada por você existir”. Então, mãe, feliz Natal!

(Ênio César de Moraes) 

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Questão de jeito

Dez minutos já se haviam passado e nada: o parafuso não entrava. E o pior é que era sábado e ele havia planejado sair do trabalho às quatro para encontrar-se com uma garota a quem conhecera no dia anterior. Já eram seis e quarenta e cinco, o sol já se rendera à força da noite, que prometia, dada a sua formosura. E nada de o bicho entrar.
O cliente estava inquieto, pois a loja havia marcado a entrega do carro para as quatro horas, horário normal de fechamento — quando nenhum parafuso emperra.
De pensar que, há dez minutos, respirava aliviado, afinal, depois de tanto serviço, sob pressão, bastava parafusar a peça e pronto, estaria livre. Mas, no exato momento de fechar com chave de ouro (isto é, de fenda) seu trabalho, surpresa... Tinha uma pedra no meio do caminho! Como podia uma peça tão insignificante causar tamanho aborrecimento?
O proprietário do carro, uma pessoa sensível, que não gostava de incomodar, compartilhava, silencioso, o seu drama, vendo-o suar (de cansaço ou de raiva), e torcia para que o embate se desse logo por encerrado. “Agora vai”, pensava ele, mas o maldito parafuso não ia. E ele meio que “consolanimava” seu quase amigo com um “Tá de rosca, hein!”. Ao que o jovem rapaz, descrente, respondia com um sorriso amarelo.
“Se não entrar agora, o jeito vai ser desmontar tudo e remontar”, afirmou categoricamente enquanto lubrificava o danado. A fala contundente do profissional estremeceu a todos, afinal era inimaginável, depois de toda a mão-de-obra, àquela hora, recomeçar o serviço. A expectativa aumentou dramaticamente, e os espectadores que acompanhavam a pendenga — os mecânicos solidários, o dono da loja e o inoportuno cliente — fizeram uma espécie de corrente. Parecia pênalti decisivo em final de campeonato.
E lá foi ele. Enrosca um pouquinho e mais um pouquinho e... entrou! A alegria foi geral, era inacreditável, por sorte ou pelo jeito, o parafuso cedeu e encaixou direitinho no seu lugar. A última peça estava fixada, e todos poderiam voltar descansados para suas casas. Alguém mais atento e menos emocionado conseguiria até enxergar uma discreta lágrima que insistia em rolar no rosto daquele trabalhador, que chegara a fazer promessa para que aquele teimoso tarugo obedecesse ao seu comando.
Tudo pronto. Conta acertada, gorjeta generosa dada, agradecimentos... Todos, felizes, deixaram a loja. Nosso amigo, o mecânico, conseguiu mais uma vitória ao, após uma hora e meia de desculpas e explicações, convencer sua pretendente a sair com ele, e a noite foi realmente muito proveitosa.
Ele só não esperava é, na segunda-feira, bem cedo, encontrar na loja aquele automóvel que lhe trouxera tanto problema e que, talvez por isso, foi avistado de longe. “Será que algo deu errado?”, perguntava-se ele. Foi uma grande surpresa ouvir, por ironia do destino (e pela opinião de um dos filhos do homem), que o acessório ficaria mais bonito sem aquela última peça.
Nosso herói não se deixou abater, pois, naquele duelo, já ficara comprovado quem comandava. Solicitamente orientou que o carro fosse colocado no elevador e sentiu-se à vontade para dizer: “Eu também acho que fica bem melhor sem, mas não quis dizer nada para que o senhor não pensasse que era por incompetência minha”. E, decidido, pegou aquela mesma chave de fenda e pôs-se a destorcer o parafuso. Uma volta, duas voltas e... — adivinha! — o dito-cujo quebrou.

(Ênio César de Moraes) 

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O bem mais precioso

O bem mais precioso que temos?
O dinheiro? Não.
Ah! o tempo — essa escassa e almejada riqueza!
Nada nos incomoda mais do que a perda de tempo.
Quão deprimente é essa constatação!
O dinheiro, recupera-se; o tempo, este não.
Vão-se, com ele, todos os nossos sonhos, nossas esperanças,
Nossas alegrias... E o que fica? Um vazio
Corrosivo que, com o tempo, nos destrói.
Ah! o tempo! Quanta falta nos faz!
Tempo para ler, para escrever, para dormir, para curtir os filhos,
Para respirar, para amar, para viver...
“Meu reino por um pouco mais de tempo!”
Que milionário, à beira da morte, não daria sua fortuna
Só para ter um pouco mais de tempo?
“Passe lá em casa!”; “Quando tiver tempo, me liga!”
Espalhados por toda parte, os relógios nos dizem,
Com seu tom mórbido e ameaçador: “O tempo está passando!”
Quisera ser o senhor do tempo! Controlar as horas... Imagine!
Fazer durar uma vida aquilo que durou um minuto;
Fazer passar em um segundo o que nos consumiu durante anos...
Quisera ter o fôlego das personagens de Clarice para mergulhar
No passado e, num instante-já, reviver uma vida,
De preferência, os momentos felizes.

(Ênio César de Moraes) 

sábado, 29 de setembro de 2007

A arte de conviver

Em silêncio, trava uma luta insana, terrível,
Contra um inimigo incomparavelmente mais forte,
O desconhecido.
Angustiado, fecha-se para o mundo.
Em seu mundo,
Sente-se ilhado, incompreendido.
Ferido, sem saber onde nem por quem foi atingido,
Simplesmente convive com a dor.
Aturdido, vive a tristeza de “odiamar”:
Perto de quem ama, quer respirar, viver;
Longe de quem ama, pensa que vai morrer.
Irrita-se com a vida, com a incerteza do amanhã
E gasta seus dias ruminando atitudes e pensamentos,
Sopesando cada passo de uma caminhada longa e torturante.

(Ênio César de Moraes) 

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

CIRCO SEM PÃO

“Um por todos e todos por um!”
Entre mesadas, malas e cuecas fartas e presentes generosos,
protagonistas de uma grotesca e desastrada pantomima,
nossos mosqueteiros modernos procuram obscurecer
o que está explícito, com explicações — interessantes, é verdade! —
para tudo aquilo que há pouco rechaçaram
e condenaram com veemência.
Se o poeta é um fingidor, o político é poeta,
que, no afã de provar sua honestidade, chega a acreditar que seja honesto.
Triste sina é a do povo, esse fantoche que, eleição após eleição, governo após governo,
esforça-se por crer que tudo será diferente e não percebe que,
nos bastidores, nossos artistas comemoram, unidos, o sucesso de cada nova apresentação
no patético picadeiro que se tornou o cenário político do País.
Esse espetáculo bem que poderia parar!

(Ênio César de Moraes) 

terça-feira, 4 de setembro de 2007

Racionalmente emotivo

Os caminhos se cruzam,
As vidas se entrelaçam
Para nunca mais serem as mesmas.
Palavras simples, frases bobas, gestos pueris
Renascem, e a vida, de repente, passa a ter sentido.
Coisas velhas e esquecidas ganham roupagem nova,
As cicatrizes deixam de doer,
O coração empedernido de outrora
Volta a pulsar involuntariamente.
E o longe faz-se perto,
O impossível ganha possibilidade.
O que era trágico fica cômico,
O que era tudo vira quase nada.
A emoção e a insensatez voltam a reger
A razão, que se acovarda, se esconde
E arquiteta com sua mais fiel companheira ―
A lógica ― o contragolpe indefensável que, oportuno, lhe restituirá
A função perene de dar
À vida, essa torta apetitosa, um gosto amargo de soro caseiro.


(Ênio César de Moraes) 

sábado, 1 de setembro de 2007

Primeiros passos

Ao André

De súbito, ele ensaia os primeiros passos.
A alegria de caminhar com as próprias pernas
é bem maior que o medo de cair.
Seu sorriso inocente (ele ainda não fala o nosso idioma)
diz “Mundo, aí vou eu!”.
Os gigantes, que têm a memória curta, contrariam
a natureza humana e obstruem o caminho,
desafiando ainda mais o nosso ingênuo e impetuoso desbravador,
que não toma conhecimento dos perigos de cada nova jornada.
Melhor assim, a consciência e o medo, muitas vezes,
impedem-nos de extrapolar nossos limites.
Nem por isso deixamos de ser felizes, afinal, a vida é um mistério,
repleta de “ses”, que povoam nosso imaginário e dão a medida da nossa (in)felicidade.
Vá em frente, destemido herói, e lembre aos que se acovardam ante os
obstáculos da caminhada que nossas aventuras mais interessantes
foram vividas nos momentos em que ignoramos
esta maravilhosa e assustadora faculdade:
a razão.

(Ênio César de Moraes) 

Esperança que (se) renova

Chove lá fora, um dia mais nostálgico do que feio.
Um dia como tantos outros: uma criança nasce, outra morre;
pessoas comemoram mais uma primavera, outras agonizam nas filas dos hospitais, jazem sobre o asfalto, choram a perda de um dos seus;
alguns festejam a aquisição de um imóvel ou de um novo automóvel, enquanto alguém definha sem ter o que comer;
casais celebram mais um ano de vida conjugal, outros sofrem com a separação;
estudantes regozijam-se com uma festa de formatura, no momento em que alguns sentem o gosto amargo da reprovação;
um time vibra com o retorno à série “A” do Campeonato Brasileiro, enquanto um segundo amarga a derrota e/ou o rebaixamento para a série “B”;
uns festejam a liberdade, outros penam nas mãos de bandidos.
Ao fundo, a canção diz “Não chores mais... tudo, tudo vai dar pé”.
Eis o mistério da vida! Apesar de toda a hostilidade do mundo, algo nos mantém vivos e esperançosos de que dias melhores — que talvez nunca venham — tragam-nos a paz e a felicidade que julgamos merecer.


(Ênio César de Moraes)